sábado, 6 de julho de 2019

Lectio Vicentina: a Compaixão e a Misericórdia




Conferência de 06 de agosto de [1656][1]

                Quando vamos ver os pobres, devemos entrar em seus sentimentos para sofrer com eles e colocar-nos nas disposições daquele grande apóstolo que dizia: Omnibus omnia factus sum (1 Cor 9, 22), fiz-me tudo para todos; de forma que não recaia sobre nós a queixa que fez outrora Nosso Senhor por um profeta: Sustinui qui simul mecum contristaretur, et non fuit (Sl 68, 21), esperei para ver se alguém se compadecia de meus sofrimentos, e não encontrei ninguém. Para isso, é preciso empenhar-nos em enternecer nossos corações e torná-los sensíveis aos sofrimentos e  misérias do próximo, pedindo a Deus que nos dê o verdadeiro espírito de misericórdia, que é o espírito próprio de Deus; pois, como diz a Igreja, é próprio de Deus fazer misericórdia e comunicar-nos esse mesmo espírito. Peçamos, pois, a Deus, meus irmãos, que nos dê este espírito de compaixão e de misericórdia, que nos encha dele, que no-lo conserve, de forma que quem vir um missionário possa dizer: “Eis aqui um homem cheio de misericórdia”. Pensemos um pouco na necessidade que temos de misericórdia, nós que devemos exercitá-la para com os demais e levar a misericórdia a todos os lugares, sofrendo tudo pela misericórdia.

                Felizes nossos coirmãos que estão na Polônia e que sofreram tanto durante estas últimas guerras e durante a peste, e que ainda sofrem para exercitar a misericórdia corporal e espiritual e para aliviar, assistir e consolar os pobres! Felizes missionários, aos quais nem os canhões, nem o fogo, nem as armas, nem a peste puderam fazer sair de Varsóvia, onde os retinha a miséria dos outros; que perseveraram e ainda perseveram, corajosamente, em meio a tantos perigos e sofrimentos, pela misericórdia! Oh! Como são felizes por empregar tão bem este breve tempo de nossa vida na misericórdia! Sim, este momento, porque nossa vida não é mais do que um momento, que passa tão depressa e logo desaparece. Ah! Meus setenta e seis anos de vida não me parecem agora mais do que um sonho e um momento; e nada me resta deles, a não ser o pesar por haver empregado tão mal esses instantes. Pensemos no pesar que teremos, à hora de nossa morte, se não nos servirmos deste momento para fazer misericórdia.

                Sejamos, pois, misericordiosos, meus irmãos, e exercitemos a misericórdia para com todos, de forma que nunca encontremos um pobre sem consolá-lo, se o pudermos; nenhum homem ignorante, sem ensinar-lhe, em poucas palavras, as coisas nas quais ele precisa crer e o que ele precisa fazer para sua salvação. Oh Salvador, não permitais que abusemos de nossa vocação, nem tireis desta companhia o espírito de misericórdia. Que seria de nós, se nos retirásseis vossa misericórdia? Concedei-nos, pois, esse espírito, junto com o espírito de mansidão e de humildade. 

Inspiração bíblica: Sl 84(83); Lc 10, 25-37.

Para refletir:
Na parábola do Samaritano, Jesus nos propõe o caminho da misericórdia: ver, comover-se e agir. São Vicente nos convida a encarnar, em nossa ação missionária, essa mesma atitude dinâmica.
1)       Procuro VER a realidade dos pobres e, ainda mais, o rosto concreto de cada um deles, tal como se apresentam, ou limito-me a um olhar superficial, tendencioso e generalizante, incapaz de chegar às raízes dos dramas individuais e coletivos?
2)       Quando sou capaz de COMOVER-ME, deixo o sofrimento alheio “remexer as entranhas do meu coração”, sinto, de fato, a dor do outro que está caído à beira do caminho, ou simplesmente sou tomado por um sentimentalismo estéril?
3)       O olhar atento, que vai às raízes mais profundas, e o coração que se debruça sobre a miséria do outro me impelem a uma AÇÃO, entedida também como cuidado, para “fazer justiça ao oprimido”, tornando-o protagonista de sua própria história?  



[1] SV XI, 340-342.

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