sábado, 21 de outubro de 2017

Mensagem do Papa Francisco à Família Vicentina por ocasião dos 400 anos do Carisma Vicentino


Queridos irmãos e irmãs,
Na ocasião do 4º centenário do carisma que deu origem à vossa Família, gostaria de unir-me a vós com palavras de gratidão e incentivo e, ressaltar o valor e a atualidade de São Vicente de Paulo.
Ele esteve sempre a caminho, aberto ao conhecimento de Deus e de si mesmo. A esta busca constante se implantou a ação da graça: enquanto pastor, ele teve um encontro fulgurante com Jesus Bom Pastor, na pessoa dos pobres. O que pode ser constatado especialmente quando ele se deixou sensibilizar pelo olhar de um homem sedento de misericórdia e pela situação de uma família em extrema precariedade. Neste momento, ele percebeu o olhar de Jesus que o desnorteou e o convidou a não mais viver para si mesmo, mas para servi-Lo sem reservas nos pobres, os quais, mais tarde, Vicente de Paulo chamaria: “nossos senhores e mestres” (Correspondência, conferências, documentos, XI, pág. 402). Então, sua vida se transformou em um serviço constante até seu último suspiro. Uma Palavra da Escritura deu sentido para sua missão: “O Senhor me enviou para evangelizar os pobres” (cf. Lc 4,18).
Com o desejo ardente de tornar Jesus conhecido aos pobres, ele se consagrou intensamente ao anúncio, sobretudo através das missões populares, e prestou especial atenção à formação dos Padres. Utilizava de forma natural um “método simples”: falar, primeiramente por sua própria vida e, em seguida com uma grande simplicidade, de modo familiar e direto. O Espírito fez dele um instrumento que suscitou um impulso de generosidade na Igreja. Inspirado pelos primeiros cristãos que tinham “um só coração e uma só alma” (At 4,32), São Vicente fundou as “Caridades”, a fim de cuidar dos mais necessitados, viver em comunhão e colocar à disposição seus próprios bens, na alegria, com a certeza de que Jesus e os pobres são os tesouros mais preciosos e que, como gostava de repetir, “quando vais aos pobres, encontras Jesus”.
Este pequeno “grão de mostarda”, semeado em 1617, fez germinar a Congregação da Missão e a Companhia das Filhas da Caridade, ramificou-se em outros Institutos e Associações, tornou-se uma grande árvore (cf. Mc 4,31-32): vossa Família. Mas tudo começou por este pequeno grão de mostarda: São Vicente jamais quis ser um protagonista ou um líder, mas um “pequeno grão”. Ele estava convencido de que a humildade, a doçura e a simplicidade são condições essenciais para encarnar a lei da semente que morrendo gera vida (cf. Jo 12, 20-26), esta lei que, somente ela, torna a vida cristã fecunda, esta lei pela qual é dando que se recebe, encontra-se perdendo e irradia escondendo-se. Igualmente, ele tinha a convicção de que não era possível fazer tudo sozinho, mas juntos, enquanto Igreja e Povo de Deus. Gosto muito de lembrar a este respeito a sua intuição profética da valorização das qualidades excepcionais femininas que se manifestaram na fineza espiritual e sensibilidade humana de Santa Luísa de Marillac.
“Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40) diz o Senhor. No centro da Família Vicentina, há a busca pelos “mais pobres e abandonados”, com a consciência profunda de ser “indignos de lhes prestar nossos pequenos serviços” (Correspondência, conferências, documentos, XI, pág. 402). Desejo que este ano de ação de graça ao Senhor e de aprofundamento do carisma seja a ocasião de beber na fonte, de restaurar-se no manancial do espírito das origens. Não esqueçais que das fontes de graças nas quais bebeis, brotaram corações sólidos e firmes no amor, “modelos insignes de caridade” (Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est, 40). Levareis o mesmo vigor, tão somente voltando o olhar ao rochedo de onde tudo brotou. Esta rocha é Jesus pobre, que pede para ser reconhecido naquele que é pobre e sem voz. Pois ele está aqui. E vós, quando encontrardes existências frágeis, despedaçadas por passados difíceis, por vossa vez, sois chamados a ser rochas: não a parecer duros e inabaláveis, nem a mostrardes insensíveis aos sofrimentos, mas a tornardes pontos seguros de apoio, sólidos diante das contingências do tempo, resistentes às adversidades, porque “olhais para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos” (Is 51,1). Assim, sois chamados a ir às periferias da condição humana para aí levar, não vossas capacidades, mas o Espírito do Senhor, “Pai dos pobres”. Ele vos dissemina amplamente no mundo como sementes que crescem em uma terra árida, como um bálsamo de consolação para aquele que está ferido, como uma flama de caridade para aquecer tantos corações frios pelo abandono e endurecidos pela rejeição.
Em verdade, todos nós, somos chamados a saciar nossa sede no rochedo que é o Senhor e a saciar o mundo com a caridade que vem dele. A caridade está no coração da Igreja, ela é a razão de sua ação, a alma de sua missão. “A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas responsabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que é – como ensinou Jesus – a síntese de toda a Lei” (Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in veritate, 2). É a via a seguir, a fim de que a Igreja seja sempre mais, mãe e mestra da caridade, com um amor cada vez mais intenso e transbordante entre vós e para com todos os homens (cf. 1Ts 3,12): concórdia e comunhão no interior da Igreja, abertura e acolhimento no exterior, com a coragem de renunciar o que pode ser uma vantagem, a fim de imitar em tudo seu Senhor e de encontrar plenamente a si mesmo, fazendo da aparente fraqueza da caridade a única razão de seu orgulho (cf. 2Cor 12,9). De uma grande atualidade, as palavras do Concílio ressoam em nós: “Cristo Jesus [...] ‘sendo rico, fez-se pobre’. Assim também a Igreja, embora necessite dos meios humanos para o prosseguimento da sua missão, não foi constituída para alcançar a glória terrestre, mas para divulgar a humildade e abnegação, também com o seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai ‘a evangelizar os pobres’ [...]. De igual modo, a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a Cristo. (Concílio Ecumênico Vaticano II, Cost. Dogm. Lumen gentium, 8).
Foi o que São Vicente realizou durante toda a sua vida e ele fala ainda hoje a cada um e a todos nós, enquanto Igreja. Seu testemunho nos convida a estar sempre a caminho, prontos a nos deixar surpreender pelo olhar do Senhor e por sua Palavra. Ele nos pede a pobreza de coração, uma total disponibilidade e uma dócil humildade. Ele nos impulsiona à comunhão fraterna entre nós e à missão corajosa no mundo. Ele nos pede para nos libertar das linguagens complicadas, dos discursos egocêntricos centrados sobre nós mesmos e de apegos aos bens materiais que podem nos tranquilizar de imediato, mas não nos dão a paz de Deus e, muitas vezes, são um obstáculo na missão. Ele nos exorta a investir na criatividade do amor, com autenticidade de um “coração que vê” (cf. Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas est, 31). De fato, a caridade não se contenta com os bons costumes do passado, mas sabe transformar o presente. Ela é cada vez mais necessária hoje, na complexa mudança de nossa sociedade globalizada onde certas formas de auxílio e de ajuda, mesmo que justificados por intenções generosas, podem alimentar formas de exploração e de ilegalidade e, não produzir progressos reais e sustentáveis. Por esta razão, imaginar a caridade, organizar a proximidade e investir na formação são os ensinamentos atuais que nos vêm de São Vicente. Mas seu exemplo nos encoraja ao mesmo tempo a dar espaço e tempo aos pobres, aos novos pobres do nosso tempo, aos demasiados pobres de hoje, a fazer nossos seus pensamentos e suas dificuldades. O cristianismo sem contato com aquele que sofre se torna um cristianismo desencarnado, incapaz de tocar a carne de Cristo. Encontrar os pobres, preferir os pobres, dar voz aos pobres a fim de que sua presença não seja reduzida ao silêncio pela cultura do transitório. Espero sinceramente que a celebração do Dia mundial dos Pobres de 19 de novembro próximo nos ajude em nossa “vocação a seguir Jesus pobre”, tornando “cada vez mais e melhor sinal concreto da caridade de Cristo pelos últimos e os mais carenciados” e reagindo “à cultura do descarte e do desperdício” (Mensagem para o 1º Dia Mundial dos Pobres “Não amemos com palavras, mas com obras”, 13 de junho de 2017).
Peço para a Igreja e para vós a graça de encontrar no irmão faminto, sedento, estrangeiro, despojado de suas vestes e de sua dignidade, doente e preso, ou ainda, indeciso, ignorante, obstinado no pecado, afligido, grosseiro, mal-humorado e importuno, o Senhor Jesus; de encontrar nas feridas gloriosas de Jesus, a força da caridade, a felicidade do grão que, morrendo, gera vida, a fecundidade da rocha de onde jorra a água, a alegria de sair de si e de ir ao mundo, sem nostalgia do passado, mas com a confiança em Deus, criativos diante dos desafios de hoje e do amanhã, pois, como dizia São Vicente, “o amor é inventivo ao infinito”.

Do Vaticano, 27 de setembro de 2017
Memória de São Vicente de Paulo

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