domingo, 11 de outubro de 2020

SÃO VICENTE DE PAULO – O SANTO



por Pe. Ildeu Pinto Coelho, CM

 Aos 27 de setembro de 1660, rodeado pelos seus assentado, atento e participando de tudo, agoniza Vicente de Paulo. 

Levados pela mais terna afeição, ainda ampliada pela emoção do momento, seus bons filhos se esmeram em levar-lhe seus últimos préstimos espirituais. 

Multiplicam-se as orações, invocações, litânias, às quais vai respondendo com tocante boa vontade e piedade.

Seguem-se as perguntas costumeiras sobre a fé e o perdão das injúrias.

“Jamais ninguém me ofendeu!” Recebe o sacramento da Unção, o viático, sua voz cada vez mais enfraquecida. 

Aos missionários, sempre preocupados em recitar novas orações, murmura: “Basta!”- Jesus foi sua última palavra ouvida.

“Ao morrer, entregou sua bela alma nas mãos de Nosso Senhor e permaneceu assentado como estava antes, mais belo, majestoso e venerável do que nunca!” Assim nos fala uma testemunha ocular.

Menos de 2 meses depois, a 23 de novembro de 1660, no primeiro elogio fúnebre, Mons. Henri de Maupas du Tours afirmava: “Ele quase mudou a face da Igreja!”

Em 1664, aparece  sua primeira grande biografia por um seu contemporâneo e admirador, Mons. Luiz Abelly, bispo de Rodez.

Hoje a bibliografia completa sobre São Vicente comportaria mais de 10.000 referências, das quais umas 1000 propriamente como biografias

O catálogo completo da Iconografia Vicentina reuniria mais de 4000 números.

Todo aquele que se interessa pelo estudo de São Vicente de Paulo, deslumbrado, muito cedo, pela multiplicidade maravilhosa de suas obras, corre o risco de não enxergar o segredo deste dinamismo...

Seu Pai foi o primeiro a perceber nele algo de extraordinário: sua inteligência, sua vivacidade, seus bons sentimentos. 

Resolveu mandá-lo a estudar o latim junto dos Franciscanos. Em seguida, vende uma junta de bois para que com este dinheiro, pudesse começar seus estudos superiores em Tolosa.

Aos quinze anos de idade, recebe a incumbência de cuidar da educação dos filhos do advogado Sr. De Comet. 

Nasce aí uma amizade que perdurará toda a vida.

Ainda muito jovem e com poucos anos de padre, recebe a nomeação de capelão da rainha Margarida. 

Trava conhecimento com os demais funcionários subalternos. 

Visita os hospitais, distribui as esmolas. Sente-se perturbado pelo sofrimento de tantos inocentes, vítimas de tanto abandono. Doa de seu próprio bolso uma grande soma de dinheiro próprio.

Vítima de uma calúnia por parte do Juiz de Sore, que compartilhava o mesmo quarto, durante 6 anos, suporta heroicamente a acusação, sempre repetida de ser um falsário, um ladrão.

Em Paris, ainda, trava conhecimento com um ilustre eclesiástico, um renomado teólogo, arruinado pelas dúvidas contra a fé. 

Este infeliz estava à beira do desespero, do suicídio e da neurastenia. 

Num gesto surpreendente de heroísmo – “não há maior amor do que dar sua vida pelo irmão”- oferece-se a Deus como vítima. 

Sua oferta é atendida. Durante 4 anos, atravessa o “vale das trevas mais espessas”.

Relaciona-se com os mais ilustres reformadores franceses: São Francisco de Sales, Bérulle, Condren, Olier, Bourdoise, o Abade de Saint Cyran. 

Ele, o camponês, diplomado, é verdade, mas sempre com as marcas da simplicidade  e humildade, pertencente a outra estirpe. 

No  entanto, todos o respeitam, o admiram, o consultam...

Uma rápida estadia sua em Clichy transforma a paróquia rural. Ele mesmo se admira como pode ter um povo tão afeiçoado ao seu novo pastor. 

Sente-se a criatura mais feliz da terra. O mesmo pensam os moradores do seu novo vigário!...

Em Chatilon les Dombes, recupera os 6 eclesiásticos desanimados, reconduz à Igreja todo o povo afastado e especialmente o protestante, junto do qual se hospedara. 

Funda suas Caridades e conta com a maior boa vontade de toda a população a assistência aos pobres e doentes.

Junto da ilustre e poderosa família dos Gondi, torna-se uma  presença imprescindível. É a paz, a segurança, a tranqüilidade de todos.

A  senhora De Gondi já não consegue imaginar viver sem seus conselhos, sua direção. Poder-se-ia pensar em sensibilidade feminina de uma alma inquieta e escrupulosa. Mas não. O General das Galeras é de igual parecer.

Quando veio a saber por uma carta de São Vicente seu propósito de se afastar de sua residência, fica perplexo, confuso, fora de si.

“Sinto-me no desespero, devido à carta, que me enviou M. Vincent...

É preciso lançar mão de todos os meios para que tal não aconteça...

Recorramos a todas as pessoas influentes para persuadí-lo a ficar...

Desejo apaixonadamente que ele volte à nossa casa... Que aqui ele viva como o desejar... Eu serei ainda um dia um homem de bem, se ele ficar conosco!” Após a morte de sua esposa, em 1625, o General das Galeras se tornou padre e superior do Oratório, depois de Pe. Bérulle.

Para se perceber todo o alcance do trabalho das Caridades, servidas pelas senhoras da alta sociedade: duquesas, marquesas, princesas e futuras rainhas como a duquesa de Nemours, futura rainha da Polônia, Maria de Gonzaga, será preciso transportar-se àquele tempo de fausto, de honrarias, de futilidades, de ostentação e luxo... 

Senhoras dedicadas, cheias de boa vontade, mas divididas entre o Reino de Deus e as exigências sociais do outro reino...

 As Caridades se espalharam por toda parte, já eram mais de 300 senhoras, arregimentadas, instruídas, guiadas pela mão daquele misterioso sacerdote camponês. 

Por mais de uma vez, surgiu uma grave suspeita: não seria um perigo para o reino, um princípio de insurreição nacional; que tratariam em suas  reuniões , a portas fechadas? Da dúvida, partiram para a ação: oficiais  do rei e policiais colaram seus ouvidos indiscretos às portas para se certificarem do que estava acorrendo. O que ouviram deixaram-nos ainda mais perplexos: Aí se falava dos pobres, dos doentes, das crianças abandonadas, dos velhos, das jovens ameaçadas em sua honra, de  remédios, de esmolas e sobretudo....um nome que era repetido a cada frase... Jesus Cristo assim o pede!

Assim ocorreu também na cidade de Mâcon, durante o pouco tempo, que aí passou São Vicente. 

A miséria era demais, a mendicância insuportável mesmo para os mais caridosos. 

Quando começou seu trabalho de organização das Caridades, riam-se dele e o apontavam na rua: o padre milagroso, o mágico, vai ver que aqui é impossível qualquer tentativa de assistência.

Muito breve, a ironia se transformou em admiração e colaboração, toda a cidade atendeu aos apelos de São Vicente e os pobres socorridos.

Nomeado Capelão Geral dos Galés, intui, mais uma vez, a chance que a Providência lhe punha nas mãos para levar Jesus Cristo àqueles infelizes. 

Reduzidos às condições subumanas, torturados, famintos desprezados, só exprimiam o mais fundo ódio contra tudo e contra todos.

Com a mesma coragem, doçura, simplicidade, bondade, apresenta-se a estes novos paroquianos... 

Visita-os com freqüência , conversa com todos, manda-lhes a ajuda material e recebidas com escarros... 

Organiza as Missões com seus Filhos, os padres da Missão. Houve um milagre. 

Muitos recuperados física e espiritualmente receberam a liberdade, outros a saúde e todos um sentido de sua dignidade.

Quando foi procurado por Luisa de Marillac, vinha ela de um longo e doloroso caminho de dúvidas, inquietações, angústias, próxima mesmo de uma profunda depressão, prestes a cair numa neurose. 

Pessoas boas, piedosas, afeitas ao temor e ao amor de Deus, mas que tinham perdido a alegria. 

“Minha filha, Deus é amor e quer que vamos a Ele pelo amor!”

Envia Luisa como sua representante para a visita das caridades.

“Rogo à bondade divina que ela vos acompanhe. 

Seja vosso consolo no caminho, vossa sombra contra o ardor do sol, vossa coberta contra o frio e a chuva, vosso leito macio no cansaço, vossa força nos trabalhos e que, enfim, vos traga de volta em perfeita saúde e cheia de boas obras!”

“Ide, Mademoiselle, em nome de Nosso Senhor!”

Em breve estará ela a frente das jovens moças do campo, as primeiras Filhas da Caridade, servas dos pobres doentes, cheia de zelo, alegre, mostrando todos aqueles dons que andavam sufocados pelo medo e pela angústia. 

Durante longos oito anos esperou Vicente a aprovação da Companhia de seus Missionários. 

Obstáculos desde os simples curas de aldeia até do próprio papa. 

“Se o Santo Padre soubesse a condição em que se encontra o pobre povo dos campos, não teria sossego até que remediasse a tamanho mal!”

Para conseguir a aprovação da fundação das Filhas da Caridade, as dificuldades seriam bem maiores. 

Uma inovação inaudita na prática da Igreja. Como realizar o que o próprio bispo de Genebra, São Francisco de Sales, não tinha conseguido? Tornou-se realidade a parábola do grão de mostarda: da pequena e encantadora camponesa Margarida Naseau, “todos a amam, pois nela tudo é amável”, gostava de repetir o santo, até a maior congregação feminina do mundo.

Como um velho barqueiro, afeito e afeiçoado a seu mister, Vicente deslizava com a mesma perícia, naturalidade e segurança entre as margens do rio. 

Dos pobres aos ricos, dos simples aos nobres, do povo aos governantes. 

Lidava com os grandes em função dos pequeninos. Ia a eles e os freqüentava, na esperança de lhes dar a chance de serem bons, justos.

Recebendo o rico e amplo Priorado de São Lázaro transformou-o no “Ministério do Bem”, na expressão de André Frossard; no Conselho de Consciência era a consciência do Conselho, na expressão do mesmo autor...

Pouco antes de morrer, Luis XIII lhe dissera: “Se eu recobrasse a saúde, ordenaria que todos os candidatos ao episcopado fizessem uma preparação de três anos em sua direção”.

Diante do desdobramento vertiginoso de suas obras e realizações, do crescimento de seu renome, São Vicente, modestamente, inperturbavelmente, sempre se esquivando de qualquer vanglória ou vaidade. “As obras de Deus se fazem por si mesma”. “Seria presunção querer tomar a dianteira à Providência”. “É preciso começar sempre pela fé”. Não podemos nos adiantar à Providência”. “Jesus Cristo e os santos fizeram mais pelo seu sofrimento do que pelos seus atos”. “O importante não é que as obras sejam realizadas, mas sim que sejam feitas por Deus e para Deus”.

“É preciso doar-se a Deus”. 

“Esvaziemo-nos de nós mesmos, e Deus, que não suporta o vazio, nos plenificará”. 

“É preciso esvaziar-nos de nós mesmos para nos revestirmos de Jesus Cristo”. 

“Podemos fazer o que quisermos, as pessoas não acreditarão em nós, enquanto não lhes manifestarmos nosso amor”. 

“Não acreditamos nas pessoas, porque as julgamos sábias e inteligentes, mas porque as amamos”.

Decantado em prosa e verso, elogiado em vida e depois da morte, perenizado nas estátuas, nas imagens, nos quadros, nos romances, nas histórias em quadrinhos, no cinema, nos cânticos e música, Vicente de Paulo continua imperturbavelmente a se subscrever: “Vosso humilde servo Vincent Depaul’.

Comoventes os depoimentos dos grandes:

J.J. Olier: “Onde o homem que nos libertará? É isso, senhor Vicente, o que a Igreja e a porção do baixo clero, dos curas dos campos, e eu sobretudo, de mãos juntas, aos quais me ajunto para pedir. Espero tudo isso de sua pessoa, a saber: a ajuda à Igreja, a liberdade dos padres e a maior glória de Deus Pai...”

Ana d’Áustria: “Perdendo o senhor Vicente, a Igreja e os pobres perdem tudo!”

Mais tarde, o próprio Voltaire irrequieto, irreverente, anticlerical e violento em seus ataques, não escapou ao fascínio e magia espiritual do Pai dos Pobres: “Santo de minha preferência é Vicente de Paulo!”

Quantas vezes tivera conhecimento das decisões do ministro todo-poderoso: “As razões do Estado exigem assim, são exigências do Reino”. 

E ele cuidando das coisas de Deus: “Minhas filhas, é vontade de Deus (do Reino de Cristo) que façamos e procedamos dessa maneira!”.

“Confiar nos meios humanos para as coisas de Deus é o mesmo que confiar no Demônio. As coisas de Deus só se realizam por meios divinos.”

Uma análise apressada e superficial levaria o historiador a interpretar a influência misteriosa de Vicente de Paulo sobre as pessoas com a etiqueta de um autêntico Líder Carismático. 

Atraía, arrastava após si todas as categorias de pessoas. 

Uma reflexão mais profunda nos moldes do Evangelho nos convenceria, ao contrário, de uma autêntica cristofania.

“É preciso revestir-se de Jesus Cristo!” Suas armas infalíveis foram sempre a oração, a humildade, a simplicidade, a mansidão, a mortificação, o zelo a toda prova. 

Guardou, desde criança, até a mais avançada idade, sua sensibilidade, sua terna compaixão. 

“Se fracassarmos na vida espiritual, fracassaremos em tudo!”

 Coragem e firmeza diante dos poderosos, ternura e compaixão diante dos pequeninos e humildes. 

Sua longa vida, desde os começos imprecisos e indecisos de um jovem padre, de apenas dezenove anos, ainda preocupado em dar uma tranqüilidade econômica aos pais até a velhice cheia de realizações segue os caminhos imprevisíveis só conhecidos por Deus. 

Foi lenta e profundamente trabalhado pela graça, através dos acontecimentos. 

Sempre quis encher-se de Deus, esvaziar-se de si mesmo e se revestir de Jesus Cristo, a única paixão de toda sua vida de oitenta anos.

Tendo descoberto Jesus Cristo, evangelizador dos pobres, pôde enxergá-lo nos pobres e sofredores. 

Mesmo quando ainda não havia acontecido a “grande arrancada” em direção aos pobres, nunca perdera sua identificação com eles, nunca se distanciara de suas origens, camponês e pobre sempre foi e quis ser, embora tivesse grande soma de bens a gerir em favor dos necessitados.

Por isso mesmo sua vida se assemelha ao evangelho, com o mesmo cortejo de pobres, doentes, santas mulheres, crianças, sacerdotes...

Ainda hoje, com a santidade vinda do céu e o humor das Landes, ele continua  a nossa disposição: “Vosso muito humilde servo, Vicente de Paulo”.


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